sexta-feira, 9 de abril de 2010

Moeda da Sorte

Para oito almas que, assim como eu, também querem matar o cansaço: Lucas, George, Tuka, Walter, Andressa, Bruna, Amanda e Monique.

"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."
Caio Fernando Abreu


Eu estava tão cansado. Cansado de tentar e sempre fracassar, cansado de esperar e continuar esperando, cansado de amar e não ser correspondido, cansado de andar e viver tropeçando, cansado de acordar e não conseguir dormir depois, cansado de me sentir cansado...
Não espero que você me entenda. Ninguém entende um cara que pensa em se matar. Eu entendo. Por isso nem vou perder meu tempo me explicando, dando motivos. As justificativas de um suicida são sempre vistas como doença. A única doença que eu tinha era o cansaço.
A noite estava perfeita para um suicídio perfeito! “Paredes, não me esperem porque eu não voltarei mais” eu disse ao sair decidido daquele apartamento horroroso.
Fazia frio, muito frio. Desses frios bonitos que a gente vê nos filmes europeus. Só não havia neve. O céu transbordava de estrelas. Eu sei que elas me observavam. O chão estava molhado. Choveu a tarde inteira, mas a noite só restara o frio.
Enquanto eu caminhava em direção a estação de metrô eu pensava. Óbvio, quem não pensa enquanto está caminhando? “Eles” eu pensei. Eles parecem tão apressados que não têm tempo nem de pensar. Eles só precisam chegar logo aonde quer que seja. Eles sempre querem chegar a algum lugar. Eu também, não vou mentir. Mas os lugares aos quais eu sempre quis chegar... eu nunca cheguei a lugar algum.
Dez reais o guarda-chuva. Não estava mais chovendo. Mas eu comprei assim mesmo porque o vendedor ambulante foi a primeira pessoa que me olhou nos olhos em um mês. Acho que ele gostou de mim. Eu também olhei nos olhos dele ao dizer “preto, por favor”. Seus olhos eram mais bonitos que os meus.
Guarda-chuva preto. Tão elegante você não acha? Eu acho legal andar segurando um guarda-chuva fechado numa noite fria. Eu até desejei que começasse a chover só para estrear meu novo acessório. Quanta pretensão a minha desejar alguma coisa, mesmo que fosse uma simples garoa paulistana.
No meio do caminho eu passei em frente à casa de doces. Não resisti. Tive que entrar. Comprei um saco pequeno de balas de goma e dois Choquitos. A moça do caixa não olhou nos meus olhos quando eu passei os itens. O vendedor ambulante continuava a ser a única pessoa que me olhou nos olhos em um mês.
Sacola e guarda-chuva numa mão. Moeda da sorte na outra. Era uma moeda cobre de cinco centavos. Você pode se perguntar porque uma moeda tão comum era a minha moeda da sorte. Eu gostaria de poder te contar, mas é uma história muito longa. Basta você saber que ela era minha moeda da sorte, pronto e acabou.
Aliás, você sabia que moedas da sorte não dão sorte? Verdade. O que elas dão, na verdade, são histórias. Eu tenho algumas histórias relacionadas à minha moeda da sorte. Mas acredite: você não vai querer ouvir, eu sou péssimo contador de histórias.
Tirei o MP3 do bolso do casaco. A noite pedia um som melancólico. Eu disse melancólico e não triste. A melancolia é a prima bonita da tristeza.
Fui de Evanescence. A natureza criou a voz da Amy Lee para ser ouvida em noites frias e, de preferência, a última noite de um jovem suicida. Am I that unimportant? Am I so insignificant? Isn't someone missing me?
Não, não havia ninguém sentindo a minha falta. Por mais que elas me ouvissem, eu sei que as paredes não tinham consciência. Meu último peixe, Chester, um beta azul lindo, falecera há dois meses. Eu sentia falta dele. “A beleza do solitário” era o que ele representava para mim. Ah! Quantas vezes eu já quis estar no lugar dele. Não vivendo preso dentro de um aquário. Mas morto e enterrado num grande vaso de flores.
Foi tão estranho, duas semanas depois do enterro dele, ali, dentro daquele vaso que só havia terra começou a brotar umas folhinhas. Um mês depois e desabrochou uma linda flor azul. Azul-Chester. Eu juro: nunca plantei nada ali dentro além do Chester. Chester... será que ele havia se tornado uma flor? Aquela flor azul?! Acho que sim... Não havia outra explicação. Eu sei que o Chester recusava-se em me deixar. Na forma de peixe ou na forma de flor, ele seria para sempre a beleza do solitário.
Uma velha esbarrou em mim. Quase me arrancou o guarda-chuva e a sacola. Gente velha não deveria ter pressa. A pressa implica numa veloz passagem de tempo. E tempo é uma coisa que falta em demasia para gente velha. Eu não estava com pressa. Eu tinha tempo para pensar.
Parei numa banca de jornal. Eu vi que não tinha a minha revista de vídeo games favorita. Mesmo assim eu resolvi perguntar ao velho jornaleiro se havia. Sem olhar nos meus olhos, ele fez que não com a cabeça. O vendedor ambulante continuava a ser a única pessoa que me olhou nos olhos em um mês.
O metrô estava lotado. Muita gente voltando do trabalho, eu deduzi. Eles estavam com pressa de chegar logo em casa. Provavelmente deveria haver alguém esperando por eles. Quando alguém espera por nós, também temos pressa não é mesmo? Pressa de não deixar o outro esperando.
Entrei na fila da bilheteria. Fiquei atrás de uma mulher de seus trinta e poucos anos. Seu perfume era delicioso. Não sei definir exatamente o que era, entretanto lembrava ligeiramente o cheiro do Chester. Não o Chester peixe, mas o Chester flor.
Quando chegou a minha vez de comprar o bilhete, pedi um unitário. Apenas um porque, para mim, só havia ida. Eu precisava honrar o que disse às paredes. Eu não sei lhe dizer se a mulher da bilheteria olhou nos meus olhos ou não. Droga! Agora fui eu quem não olhei nos olhos de alguém. É que eu fiquei reparando nas mãos delas. Mãos estranhas. Não combinavam com ela.
Atravessei a catraca e me dirigi até a plataforma. Ela estava quase vazia. Fui até o final dela para esperar o trem que iria me decepar. Eu sempre gostei de esperar no final da plataforma. Dentro do bolso do casaco eu apertei a minha moeda da sorte.
No último banco havia outro cara sentado. Deveria ter a minha idade. Ele olhou nos meus olhos! Sim, ele olhou nos meus olhos! O vendedor ambulante (ou a mulher da bilheteria) já não era mais a única pessoa a me olhar nos olhos em um mês. Eu sentei ao lado dele. Não pude deixar de olhá-lo nos olhos também. E ao fazer isso pude ver o quanto ele era bonito. Não somente os olhos (que era cor de azul-Chester), mas o rosto inteiro. Ele me pareceu tão melancólico. E lembre-se que para mim, a melancolia é bela.
Eu tirei um Choquito da sacola. Abri e comecei a comer. Tive a impressão de que o cara do meu lado me observava lateralmente. Que ridículo: um cara feio comendo Choquito ao lado de um cara bonito.
Um trem estava chegando. Porra! Eu estava comendo. Foda-se. Eu esperaria o próximo. Afinal eu não estava com pressa. Ainda faltava mais um Choquito e um saco de balas de goma.
Várias pessoas desceram do trem, elas saíram apressadas como sempre. Curioso: o cara ao meu lado não embarcou naquele trem. Ele nem se mexeu do lugar. Assim como eu, acho que ele também não estava com pressa. Talvez ele estivesse esperando alguém... Não, não, não. Ele nem levantou a cabeça para olhar as pessoas que saíram do vagão.
“Quer um Choquito?” pensei em oferecer. Eu ri comigo mesmo. Putz! O cara olhou diretamente para mim! “Do que você está rindo?” ele perguntou.
“Nada não” eu respondi. Ele ficou encarando-me fixo por um tempo. Abaixou a cabeça de volta sem nada dizer. Eu precisava dizer algo para quebrar o gelo azedo daquela situação. Eu não poderia morrer sabendo que um estranho achava que eu rira dele.
“Eu não estava rindo de você. É... só que eu pensei em te oferecer um Choquito” eu expliquei. Ele sorriu olhando para mim. O sorriso triste mais belo que eu já vi na minha vida. Sim, aquele sorriso era triste, e não melancólico. Se fosse melancólico eu não precisaria dizer que era belo.
“Eu gosto de Choquito” ele disse. Tirei o outro Choquito da sacola e entreguei a ele. Suas mãos eram muito brancas. Mas eu olhei pouco para elas. Eu olhava nos olhos dele. Azul-Chester. “A beleza do solitário”.
“Esse chocolate lembra minha infância” ele me contou abrindo o Choquito. Eu concordei – menti, na verdade.
“Para onde você está indo?” ele me perguntou. “Espero que para um lugar onde as pessoas não tenham pressa” eu falei. Acho que ele não entendeu, porém esboçou um sorriso. Ele mordeu o Choquito.
“E você?” devolvi a pergunta. “Vou encontrar meu melhor amigo” ele respondeu. Achei tão bonito... Essa coisa de se encontrar com o melhor amigo. Então ele realmente estava esperando alguém.
Meu Choquito já havia acabado. Eu tive vontade de perguntar “onde mora o seu melhor amigo?”, mas não era da minha conta. Ele ficou quieto, voltou a abaixar a cabeça. Fiquei observando ele comer o chocolate. Definitivamente aquele cara era melancólico.
Do túnel escuro veio um jato de vento frio avisando que mais um trem estava chegando. Eu não me pus de pé. Ainda faltava o saco de balas de goma. O cara também não se levantou, apenas puxou a manga da blusa e verificou seu relógio.
O trem estacionou. As portas do vagão abriram-se. Desta vez o cara levantou a cabeça e deu uma olhada nas pessoas que saíram apressadas. Aff! Quanta pressa.
Abri o saco de balas de goma. O cara olhou e sorriu para os meus olhos. Sim, ele sorriu para os meus olhos. Eu também sorri para os olhos dele. Peguei uma bala verde, supostamente de limão. Sempre foi a minha favorita. Ele terminou seu Choquito e, sem pedir, enfiou a mão no meu saco de balas de goma e pegou duas das verdinhas! Que ousado! Eu adorei aquilo.
“Você gosta mesmo de doces, né?” ele me disse. “Não tanto quanto você” eu mandei. Ele sorriu para os meus olhos novamente. Fez-se silêncio. Dois solitários comendo bala de goma no último banco no final da plataforma. Ele esperando seu melhor amigo, eu esperando o trem da morte.
“Qual o seu nome?”, eu perguntei. “Arthur” ele informou. Eu achei um nome muito bonito. Combinava com ele. Infelizmente ele não perguntou o meu nome de volta. Confesso que me senti meio frustrado com isso. Talvez ele esperasse que eu dissesse espontaneamente, mas eu não disse. Não havia necessidade.
O saco de balas de goma era pequeno. Rapidamente nós dois acabamos com todas elas. Joguei o saco vazio na lixeira ao lado do banco. Arthur ainda tinha algumas balas na mão. Senti que minha hora estava chegando. Não havia mais doces para me distrair. Apertei minha moeda da sorte dentro do bolso do casaco. Mas eu não estava nervoso ou ansioso. Não mesmo. Fazia tempo que eu já me preparava para este dia.
Assisti o Arthur terminar as últimas balas. Seus dedos delicados levavam aquelas balinhas coloridas até aquela boca de lábios vermelhos como sangue. Eu estava pensando no que ele poderia estar pensando. Será que a minha presença o incomodava? Acho que ele queria estar sozinho quando chegasse seu melhor amigo.
Mais um jato de vento frio veio do túnel escuro. Outro trem vinha vindo. Arthur e eu nos pusemos de pé ao mesmo tempo. Pelo visto ele ia pegar o trem. Não sei porque mas naquele instante eu me senti ansioso, tenso. A atmosfera era opressora. Dava para ouvir o trem aproximando-se. Apertei com mais força a moeda da sorte dentro do bolso do casaco. Havia chegado o momento de eu me livrar da minha doença, do cansaço.
O trem estava próximo! Desesperado, antes eu resolvi perguntar ao Arthur: “Onde mora seu melhor amigo?” e ele respondeu para os meus olhos com lágrimas em seus olhos: “No meu coração” e logo em seguida...


(Lord Klavier)

24 comentários:

  1. demais cara, muito bom o conto

    ResponderExcluir
  2. gostei as partes tristes e meláncolicas; transborda um sentimento triste e cheio de dias nublados.

    ResponderExcluir
  3. Acho que a dor dos personagens do conto podia ser mais pungente. Suicidas, por mais que já estejam na fase mais apática, devem ter uma dor pungente, e não um simples cansaço...Do contrário eles teriam vontade de "dormir para sempre" e não morrer.

    ResponderExcluir
  4. Mas não é um "simples cansaço". É um cansaço em sentido figurado e como o Eu-lírico é uma projeção minha, posso te afirmar que eu vejo o morrer como um "dormir para sempre".

    ResponderExcluir
  5. cara, eu amei!
    e evanescence se encaixou perfeitamente aí HAHA
    amei o blog, to seguindo e fazendo propaganda dele no meu
    me segue, aceita parceria?
    http://ebriedades.blogspot.com/
    abraços :D

    ResponderExcluir
  6. Amei!! Cara tu escreve muito bem, parabens.
    É tão triste (ou melhor "melancólico" rsrs) e sensivel. O final sem final me deixou muito curioso e pensativo. É baseado em fatos reais?

    ResponderExcluir
  7. Cheio de questionamentos sobre a pressa, o tempo, os olhos, a espera... Filosofia pura! "Por mais que elas me ouvissem, eu sei que as paredes não tinham consciência" vai pro meu msn. haha
    Cara aquele negócio do peixe azul aconteceu mesmo? Também gostaria de saber se é baseado em fatos reais.
    Poste mais contos nesse estilo, por favor.

    ResponderExcluir
  8. Adorei o texto .; e amei a header do blog;
    parabens;

    ResponderExcluir
  9. Gostei bastante,apesar de muito longo mas vale a pena o esforço( por que tem cada post grande repetitivo que pelo amor de Deus ninguem merece) muito bom mesmo

    ResponderExcluir
  10. Ah esse foi meu post mais longo até o momento. Afinal, trata-se de um conto.
    Realmente tem cada post grande e repetitivo que ninguém merece.

    Fico contente que você tenha gostado. Muito Obrigado.

    ResponderExcluir
  11. Sem palavras. Final chocante. Você tem o mesmo estilo do autor que você cita, Caio Fernando Abreu. Parabéns!

    ResponderExcluir
  12. eu recomendo seu blog no meu (em 'os bons') e vc recomenda meu blog no seu (mas pelo que vejo vc ainda não recomenda nenhum no seu)

    ResponderExcluir
  13. Definitivamente fabuloso. De uma melancolia...magnífica. Adorei. Muito detalhado e transborda sentimento. Pessoa raríssima você.

    ResponderExcluir
  14. Fabuloso, fantástico... Obrigado por recriar meus sentimentos em palavras também.
    Obrigado pelo conto.

    ResponderExcluir
  15. Simplesmente maravilhoso, o seu jeito de escrever não deixa com que as pessoas desistam de ler antes de chegar ao final. Parabéns, você escreve muito bem!

    ResponderExcluir
  16. Nossa cara, Maginifico, concordo com o Lorde Croowel " Pessoa raríssima você"

    ResponderExcluir
  17. chorando... chorando... me lembrei do Tuka... chorando...

    ResponderExcluir
  18. Também me faz lembrar do Tuka. O mais incrível é que este conto foi escrito enquanto ele ainda estava vivo, se tivesse sido escrito depois, poderia falar que toda a situação no metrô foi inspirada nele, mas não... será que foi o contrário? Será que ele se inspirou no conto? Espero que não...

    ResponderExcluir
  19. Lord curiosidade minha. o Tuka de que vc fala ele se matou igual ao conto ?

    ResponderExcluir
  20. Sou suspeita para falar sobre você e sobre o que escreve ^.~.Seu texto está perfeito!Saudade de você...Um beijo querido.

    ResponderExcluir